O que reguladores de telecom da América Latina podem aprender com a experiência global
As reclamações de longa data da indústria de telecomunicações móveis, como o custo do espectro e a contribuição justa, ressurgiram em um momento em que os operadores enfrentam dificuldades devido ao baixo ARPU e e à necessidade de grandes investimentos para implantar redes 5G.
Os reguladores latino-americanos precisam acompanhar as demandas de um ecossistema de infraestrutura digital dinâmico, que mudou dramaticamente nos últimos anos, afirma o diretor de regulação da GSMA, John Giusti.
"Finalmente, as pessoas estão dizendo 'o mercado de 20 anos atrás não é o mercado de hoje'", disse Giusti à BNamericas.
O executivo é responsável por liderar a agenda de políticas públicas e defesa da indústria em colaboração com governos, reguladores e instituições internacionais.
Nesta entrevista, ele fala sobre o que os reguladores da América Latina podem aprender com a experiência global na regulação do mercado móvel, entre outros temas.
BNamericas: As operadoras na América Latina estão lutando com ARPU baixos e investimentos altos. O que os reguladores podem fazer para melhorar as condições de mercado?
Giusti: A grande dificuldade é que, globalmente, grande parte da regulamentação e dos custos regulatórios que recaem sobre a indústria se baseiam em um ambiente de mercado de duas décadas atrás.
Portanto, o principal incentivo que posso dar aos reguladores é focar em como o cenário competitivo do mercado digital atual se apresenta e quais regulamentações já não são mais relevantes.
Há uma enorme quantidade de custos envolvidos, como taxas de licença, taxas de espectro e tributação. O objetivo é conectar mais pessoas; precisamos manter os custos o mais baixos possível.
BNamericas: Você pode mencionar alguns casos de sucesso global com os quais os reguladores da América Latina possam se inspirar?
Giusti: Isso varia conforme as dinâmicas de cada mercado. Um dos grandes desafios é a escala. É fundamental que os formuladores de políticas entendam a importância da escala na infraestrutura digital, pois é através dela que se consegue oferecer serviços, reduzir custos e alcançar o maior número de pessoas possível.
Em termos de casos de sucesso, leilões estruturados de maneira que não se concentrem exclusivamente na maximização da receita são passos positivos para garantir a disponibilidade do espectro, um recurso público. Por exemplo, o leilão brasileiro foi favorável, embora não seja perfeito. O mais importante é garantir que os custos e as condições do espectro sejam razoáveis.
BNamericas: Alguns dos últimos leilões na América Latina levaram em conta o problema do custo do espectro. Você acha que há mais entendimento por parte dos reguladores sobre a importância de manter o espectro a um custo baixo?
Giusti: O grande problema é que não há uma grande compreensão sobre o gasto de capital necessário para implantar a infraestrutura digital. Acredito que, se houvesse uma melhor compreensão de quão intensiva em capex é a infraestrutura digital, haveria uma maior compreensão do que é necessário para reduzir o custo dos insumos.
Além disso, muitas vezes as pessoas que mais entendem do ecossistema digital não são as que tomam as decisões sobre o preço do espectro. Muitas vezes, são outras partes do governo que tomam essas decisões. Portanto, precisamos fazer um trabalho melhor como indústria para garantir que os governos compreendam o custo-benefício das decisões tomadas em relação ao custo do espectro ou outros insumos.
BNamericas: Qual é a sua opinião sobre a concessão de espectro para indústrias para redes privadas?
Giusti: O trabalho conjunto entre o governo e a indústria para desenvolver roteiros de espectro é a maneira mais importante de atender ao crescimento contínuo no tráfego de dados em redes móveis. Portanto, acho fundamental que os governos trabalhem para identificar qual espectro está disponível e trabalhem muito de perto com os operadores de redes móveis para garantir que haja um roteiro para que possam planejar adequadamente.
Acho que uma das coisas mais arriscadas que um país pode fazer é retirar o espectro harmonizado das mãos de quem sabe como usá-lo. Por exemplo, no caso da Argentina, isso aconteceu com a identificação de 100MHz na banda 5G para a Arsat.
Sobre a sua pergunta específica sobre redes privadas, eu acredito fundamentalmente que os operadores de redes móveis estão no ramo de implantar infraestrutura de rede e provavelmente estão melhor posicionados para fornecer soluções que atendam às necessidades da indústria, mas também dos cidadãos.
Acho que ao retirar parte desse espectro, estamos aumentando a escassez de espectro e, portanto, elevando o custo do espectro. Nossa pesquisa mostrou que, quando você reserva espectro para setores verticais, está essencialmente reduzindo em pelo menos 25% a velocidade e a capacidade das redes móveis das quais as pessoas dependem.
Um dos casos mais interessantes de como isso foi abordado foi na Finlândia. O que eles decidiram foi disponibilizar o espectro para os operadores de redes móveis e, se alguém não conseguir oferecer o serviço para as indústrias, essas indústrias têm a capacidade de usar esse espectro de forma privada.
Isso significa que o operador de rede não pode impedir o uso se alguém precisar e quiser usar o espectro em uma rede privada, mas dá a primeira chance de implantar totalmente pelo operador que pode alcançar todo o país.
BNamericas: Estamos vendo uma nova era de consolidação e acordos entre operadoras para compartilhar redes. Qual você considera ser a melhor abordagem em termos de estrutura regulatória?
Giusti: Eu preferiria tratar esses temas separadamente, mas acho que, em termos de compartilhamento de redes, os governos deveriam estar abertos a permitir acordos comerciais para maximizar a oportunidade de compartilhar infraestrutura, especialmente quando se trata de áreas menos sustentáveis do país [como áreas rurais].
Acredito que acordos criativos de compartilhamento de infraestrutura que façam sentido comercialmente entre operadores devem ser incentivados e permitidos. Precisamos ter cuidado com requisitos obrigatórios, mas permitir isso deve ser incentivado.
Em relação à consolidação, acho que é uma daquelas áreas em que os governos devem pensar no que mais desejam. E tenho certeza de que são empresas robustas que podem investir em infraestrutura. Então, isso não vai acontecer com cinco jogadores no mercado.
Nos Estados Unidos há essencialmente três players. O Brasil é um mercado de três players, a China também é um mercado de três players. Por que alguns pequenos países europeus insistem em ter quatro? Por que em alguns países da América Central há cinco?
Não se trata apenas de uma loja de esquina competindo com outra loja de esquina. Trata-se de empresas que precisam gastar muito dinheiro para investir em infraestrutura em longo prazo. Se você não reconhecer que um operador de rede móvel é diferente de uma loja de esquina, é aí que você tem um problema de política.
BNamericas: Então, o que eu entendo é que três é o número mágico para a competição no mercado de telefonia móvel…
Giusti: Não há um número certo ou errado de operadores. Se houver consolidação, você pode enfrentar alguns problemas que podem ser abordados através da regulamentação, mas não é necessário antecipar problemas impedindo a consolidação.
Vemos uma série de oportunidades para soluções comerciais onde MVNOs operam em redes de infraestrutura.
BNamericas: A GSMA tem se envolvido na discussão renovada sobre fair share globalmente. No passado, essa questão era difícil de implementar. O que você espera para essa nova era de discussões?
Giusti: É uma discussão muito importante, pois finalmente as pessoas estão reconhecendo que o mercado de 20 anos atrás não é o mesmo de hoje.
Algumas das maiores empresas do mundo geram e crescem o tráfego todos os anos, utilizando a infraestrutura nacional para alcançar consumidores e cidadãos sem pagar por isso ou contribuir de alguma forma.
Não há uma solução única, mas a questão da responsabilidade e do papel das grandes techs é um bom ponto de partida para os formuladores de políticas.
A Comissão Europeia trouxe essa ideia, e há discussões e liderança em andamento no Brasil e na Colômbia.
Precisamos manter essa discussão, pois há um crescimento de 38% a 40% no tráfego ano a ano, e os operadores pagam por toda a infraestrutura. Muitas vezes, apenas três ou quatro empresas geram mais da metade de todo o tráfego na rede. Não deveriam elas contribuir de alguma forma?
BNamericas: As grandes techs estão abertas para essa discussão?
Giusti: Qualquer empresa que tenha se baseado em um modelo de não pagar para acessar o consumidor por tanto tempo vai querer manter isso o máximo possível, mas há um reconhecimento crescente de que esse modelo não é sustentável. E não é sustentável para elas, pois as redes não conseguirão suportar o crescimento contínuo do tráfego que estão enviando.
BNamericas: Alguns países estão discutindo a contribuição das grandes techs para fundos universais. Qual é a visão da GSMA sobre essa opção?
Giusti: Historicamente, os fundos de serviço universal não têm alcançado grande sucesso em atingir seus objetivos. Acredito que um acordo comercial seja a melhor abordagem, e você precisa criar um incentivo ou mecanismo para que as grandes techs participem da negociação. Já vimos acordos existentes, como na Alemanha e na Coreia.
BNamericas: Que tipo de regulamentações são necessárias para facilitar esses acordos comerciais?
Giusti: Não há requisitos ou mecanismos que obrigam essas empresas a participar das negociações. Quando há uma grande diferença no poder de mercado, é necessário ter algum mecanismo que diga que, se você gera mais de 5% do tráfego em uma rede, precisa negociar. É preciso de um mecanismo de arbitragem para chegar a um acordo.
BNamericas: Na América Latina, também há uma grande quantidade de pessoas não conectadas. Quais são as principais ferramentas que os reguladores têm para enfrentar essa questão?
Giusti: Quando olhamos para a questão da inclusão digital, é importante focar no fato de que a maioria das pessoas não conectadas hoje está coberta por redes móveis. Elas não conseguem usar essas redes porque não têm as habilidades necessárias, não percebem o valor ou não conseguem pagar.
Muitas vezes, o foco está nos 5% não cobertos, e não nos 40% cobertos, mas que não usam as redes. Devemos direcionar nossa atenção para essas pessoas que podem ser mais facilmente incluídas no ambiente digital, analisando quais são as barreiras.
Uma das maiores ações que os governos poderiam tomar seria reduzir impostos e taxas de importação sobre os dispositivos. Na América Latina, temos um nível desproporcionalmente alto de tributação e taxas de importação sobre dispositivos.
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